domingo, abril 15, 2007

E não se fala mais nisso

O texto a seguir - que achei em andança recente pelo universo dos blogs - descreve muito bem a bipolaridade, uma das doenças mais faladas da atualidade e que infelizmente virou moda em alguns círculos (como se a bipolaridade fosse opção ou estilo de vida pessoal e não herança genética). Dito isso, quem não quiser ler este post, é só sair! Blog afinal é isso: a gente escreve, lê quem quer. Segue o texto da menina:


Decidi, algum tempo atrás, que evitaria escrever sobre o transtorno afetivo bipolar (TAB, a.k.a. psicose maníaco-depressiva), sobre as crises alternadas de depressão e euforia, efeitos colaterais do tratamento, yada yada yada.

Porém, o comentário de um leitor sobre meu post que trata de sobrevivência (sem nenhum cunho sociológico ou pretensões variadas), me fez pensar que seria necessário esclarecer alguns aspectos do tal transtorno. Reproduzo, a seguir, o trecho do comentário de 03.03.2007 que deu origem a este post.

"(...) Gosto da sua coragem de admitir seu transtorno bipolar, embora acredite que mais coragem é viver sem medicação, afinal se todo mundo vivesse chapado nunca teríamos Faulkner, Hemingway(tudo bem que eles bebiam bastante, mas existe uma certa nobreza na embriaguez, na medicação apenas um indivíduo abrindo mão da sua autonomia, mas esse papo fica para uma outra oportunidade) (...)."

Vamos lá. O transtorno bipolar é uma doença que, como qualquer outra, precisa ser corretamente diagnosticada e tratada com medicamentos. É uma doença mental? É. O cérebro produz de forma atípica alguns neurotransmissores fundamentais para nossa saúde mental. O motivo? Ainda não se sabe com precisão. É genético? Os estudiosos entendem que sim. Pode incapacitar a pessoa de exercer suas atividades rotineiras? Quem sofre de TAB é retardado? Não.

Mas o pior de tudo é: não há cura para o TAB, apenas controle. Tal qual uma diabete, que precisa ser controlada com injeções de insulina.

Existe ainda um grande preconceito ou uma total ignorância sobre o que é o TAB e seus efeitos e sintomas, que podem ser devastadores. O paciente de TAB, se mal diagnosticado ou submetido a tratamentos incorretos, pode torrar todo o seu patrimônio em incríveis três semanas, trabalhar por 48 horas seguidas sem se cansar, emprestar as cuecas para o pior dos amigos ou, no outro extremo, ficar impossibilitado de trabalhar, parar de comer por dias e dias, não tomar banho por semanas, não falar com absolutamente ninguém, chorar até cansar e, falando um português bem claro, o paciente de TAB pode cometer suicídio.

Dito isso tudo aí em cima, posso dizer que eu sofro de um tipo de transtorno bipolar mais ou menos incomum: sou TAB com ciclagens ultra rápidas (ou seja, meu humor oscila muito mais vezes em um certo intervalo de tempo, se comparado ao humor dos bipolares “clássicos”). Isso quer dizer que o tratamento convencional, à base de lítio, não funcionou comigo. Tentei algumas combinações de medicamentos, fiquei internada dois meses em uma clínica psiquiátrica, fui submetida a várias sessões de ECT (eletroconvulsoterapia - eletrochoques, para ser mais clara), tudo para evitar o tratamento mais indicado para o meu tipo de TAB. Por quê? Apesar de eficaz, possui muitos efeitos colaterais.

O resultado disso tudo é que tenho que fazer hemogramas mensais, dormir pelo menos 9 horas por dia e controlar o apetite, já que engordei uns 20 quilos (ainda bem que eu era magérrima antes de iniciar o tratamento). Sem falar na grana que gasto todo mês com remédios (caríssimos) e sessões de terapia.

Então... o meu leitor sugere em seu comentário que: (a) dependo dos remédios, (b) falta-me coragem para viver sem eles, (c) eu vivo chapada por conta do tratamento. Sem falar da sugestão de que o mundo não teria mais Faulkners ou Hemingways se todos os talentos resolvessem viver “chapados” com medicamentos indicados para os mais variados tipos de transtornos da mente.

Pois esclareço, e perdoem-me os leitores pelo o que será um desabafo, que o comentário transcrito acima foi inadequado, típico das pessoas que desconhecem, infelizmente, o que é o TAB, a depressão crônica, a esquizofrenia, a síndrome do pânico, TOC – transtorno obsessivo compulsivo ou que enxergam uma certa beleza na afirmação de que "viver é sofrer", de Arthur Schopenhauer.

Eu busquei coragem para admitir que tinha um problema mental e precisava de ajuda médica. O segundo passo da via crucis em “busca da minha coragem” (isso poderia ser título de um filme melodramático, não?) foi não desistir de procurar um médico decente que me diagnosticasse de modo preciso e correto. Isto levou uns 4 anos, já que fui tratada por quatro (!) psiquiatras diferentes e todos erraram no diagnóstico. O terceiro passo foi aceitar a internação numa clínica psiquiátrica, monitorada 24 horas por uma acompanhante (eufemismo para enfermeira fiscal), sem falar nas sessões ECT no Hospital da Clínicas. O quarto passo foi encarar meu tratamento atual, mesmo com todos os efeitos colaterais. E continuo aqui. Matando um leão por dia, porque é FODA tomar clozapina, sentir-se cansada e gorda, fazer terapia, bancar tudo isso que custa tão caro, não ter a compreensão de vários amigos e familiares que acham que o transtorno bipolar inexiste, que o TAB não passa de mera frescura ou um capricho meu.

É FODA também sentir a solidão diária de quem precisa acordar forte todos os dias, porque uma crise pode me tirar o emprego. É FODA o desalento de perceber que só eu, e mais ninguém, realmente sabe o que é uma crise de depressão severa, quando a dor de um corte profundo não é nada comparada ao desespero de querer sair daquela crise, da desesperança e da vontade de pular do 10º andar.

Será isso tudo condição para escrever como Faulkners, Hemingways, sem falar de Virginia Woolf, Tolstoy, Graham Greene, Ana Cristina Cesar? Não, definitivamente não. Todos eles e gênios como Van Gogh e Mozart sofriam de TAB. Não é necessário sentir uma profunda angústia por estar vivo para escrever sobre as dores de viver. Não é absolutamente necessário viver escrava das minhas oscilações bruscas de humor ou da minha estranha produção de neurotransmissores, para ver beleza no que é incerto e querer, sempre, dias mais densos.

Prefiro escrever posts medíocres e não publicar um conto genial ou um romance digno de nota. Prefiro não perder minha identidade recém recuperada, prefiro tomar mais aulas de otimismo. Prefiro trabalhar no que eu gosto com a regularidade que o mercado exige. Prefiro sim, ser parte do establishment. Prefiro, mil vezes, amar as pessoas sem chocá-las com idas ao pronto socorro, com palavras mordazes e injustas típicas da fase maníaca. Prefiro não morrer como Faulkner (morreu bêbado) ou Hemingway (cometeu suicídio). Prefiro escrever tudo isso aqui, saudável, em casa, na companhia de minhas duas golden retrievers. Prefiro ter capacidade de cuidar de minhas duas golden retrievers e de todas as pessoas que realmente são importantes para mim.

Para quem enxerga “nobreza na embriaguez” e “perda de autonomia” com a medicação, eu continuo minha via crucis, aquela da coragem, para dizer “você não sabe nada, meu caro”. E nem por isso eu sinto rancor de você e de tantas outras pessoas que, ao ouvirem de minha boca "sou bipolar e não vivo sem medicação”, franzem a testa. Escrever bem é uma arte. Controlar o que é aparentemente incontrolável é uma luta constante que, ao final, vale muito a pena. Posso dizer que entre mortos e feridos, cá estou.

Fim do texto. E não se fala mais nisso.

2 comentários:

Bebete Indarte disse...

Pra mim a bipolaridade virou assunto sempre em voga.
Sei que as pessoas não gostam, evitam, fofocam, ignoram...até acontecer com elas, com alguém na família.
Eu bem que gostaria de ser que nem antes do diagnóstico, mas não sou.
Quase morri e quase matei e fujo como o diabo da cruz da "depressão forte", pois a depressão leve está sempre presente.
Mas como minha mãe contava sobre o causo da "índia canibal":
- "Ai que saudades de comer um bracinho de criança".
Essa sensação de nostalgia vou sempre ter.

Ai, que saudade da minha hopomania.

Bebete Indarte disse...

hipomania, teclei errado (oops).

Tecnologia do Blogger.

E não se fala mais nisso

O texto a seguir - que achei em andança recente pelo universo dos blogs - descreve muito bem a bipolaridade, uma das doenças mais faladas da atualidade e que infelizmente virou moda em alguns círculos (como se a bipolaridade fosse opção ou estilo de vida pessoal e não herança genética). Dito isso, quem não quiser ler este post, é só sair! Blog afinal é isso: a gente escreve, lê quem quer. Segue o texto da menina:


Decidi, algum tempo atrás, que evitaria escrever sobre o transtorno afetivo bipolar (TAB, a.k.a. psicose maníaco-depressiva), sobre as crises alternadas de depressão e euforia, efeitos colaterais do tratamento, yada yada yada.

Porém, o comentário de um leitor sobre meu post que trata de sobrevivência (sem nenhum cunho sociológico ou pretensões variadas), me fez pensar que seria necessário esclarecer alguns aspectos do tal transtorno. Reproduzo, a seguir, o trecho do comentário de 03.03.2007 que deu origem a este post.

"(...) Gosto da sua coragem de admitir seu transtorno bipolar, embora acredite que mais coragem é viver sem medicação, afinal se todo mundo vivesse chapado nunca teríamos Faulkner, Hemingway(tudo bem que eles bebiam bastante, mas existe uma certa nobreza na embriaguez, na medicação apenas um indivíduo abrindo mão da sua autonomia, mas esse papo fica para uma outra oportunidade) (...)."

Vamos lá. O transtorno bipolar é uma doença que, como qualquer outra, precisa ser corretamente diagnosticada e tratada com medicamentos. É uma doença mental? É. O cérebro produz de forma atípica alguns neurotransmissores fundamentais para nossa saúde mental. O motivo? Ainda não se sabe com precisão. É genético? Os estudiosos entendem que sim. Pode incapacitar a pessoa de exercer suas atividades rotineiras? Quem sofre de TAB é retardado? Não.

Mas o pior de tudo é: não há cura para o TAB, apenas controle. Tal qual uma diabete, que precisa ser controlada com injeções de insulina.

Existe ainda um grande preconceito ou uma total ignorância sobre o que é o TAB e seus efeitos e sintomas, que podem ser devastadores. O paciente de TAB, se mal diagnosticado ou submetido a tratamentos incorretos, pode torrar todo o seu patrimônio em incríveis três semanas, trabalhar por 48 horas seguidas sem se cansar, emprestar as cuecas para o pior dos amigos ou, no outro extremo, ficar impossibilitado de trabalhar, parar de comer por dias e dias, não tomar banho por semanas, não falar com absolutamente ninguém, chorar até cansar e, falando um português bem claro, o paciente de TAB pode cometer suicídio.

Dito isso tudo aí em cima, posso dizer que eu sofro de um tipo de transtorno bipolar mais ou menos incomum: sou TAB com ciclagens ultra rápidas (ou seja, meu humor oscila muito mais vezes em um certo intervalo de tempo, se comparado ao humor dos bipolares “clássicos”). Isso quer dizer que o tratamento convencional, à base de lítio, não funcionou comigo. Tentei algumas combinações de medicamentos, fiquei internada dois meses em uma clínica psiquiátrica, fui submetida a várias sessões de ECT (eletroconvulsoterapia - eletrochoques, para ser mais clara), tudo para evitar o tratamento mais indicado para o meu tipo de TAB. Por quê? Apesar de eficaz, possui muitos efeitos colaterais.

O resultado disso tudo é que tenho que fazer hemogramas mensais, dormir pelo menos 9 horas por dia e controlar o apetite, já que engordei uns 20 quilos (ainda bem que eu era magérrima antes de iniciar o tratamento). Sem falar na grana que gasto todo mês com remédios (caríssimos) e sessões de terapia.

Então... o meu leitor sugere em seu comentário que: (a) dependo dos remédios, (b) falta-me coragem para viver sem eles, (c) eu vivo chapada por conta do tratamento. Sem falar da sugestão de que o mundo não teria mais Faulkners ou Hemingways se todos os talentos resolvessem viver “chapados” com medicamentos indicados para os mais variados tipos de transtornos da mente.

Pois esclareço, e perdoem-me os leitores pelo o que será um desabafo, que o comentário transcrito acima foi inadequado, típico das pessoas que desconhecem, infelizmente, o que é o TAB, a depressão crônica, a esquizofrenia, a síndrome do pânico, TOC – transtorno obsessivo compulsivo ou que enxergam uma certa beleza na afirmação de que "viver é sofrer", de Arthur Schopenhauer.

Eu busquei coragem para admitir que tinha um problema mental e precisava de ajuda médica. O segundo passo da via crucis em “busca da minha coragem” (isso poderia ser título de um filme melodramático, não?) foi não desistir de procurar um médico decente que me diagnosticasse de modo preciso e correto. Isto levou uns 4 anos, já que fui tratada por quatro (!) psiquiatras diferentes e todos erraram no diagnóstico. O terceiro passo foi aceitar a internação numa clínica psiquiátrica, monitorada 24 horas por uma acompanhante (eufemismo para enfermeira fiscal), sem falar nas sessões ECT no Hospital da Clínicas. O quarto passo foi encarar meu tratamento atual, mesmo com todos os efeitos colaterais. E continuo aqui. Matando um leão por dia, porque é FODA tomar clozapina, sentir-se cansada e gorda, fazer terapia, bancar tudo isso que custa tão caro, não ter a compreensão de vários amigos e familiares que acham que o transtorno bipolar inexiste, que o TAB não passa de mera frescura ou um capricho meu.

É FODA também sentir a solidão diária de quem precisa acordar forte todos os dias, porque uma crise pode me tirar o emprego. É FODA o desalento de perceber que só eu, e mais ninguém, realmente sabe o que é uma crise de depressão severa, quando a dor de um corte profundo não é nada comparada ao desespero de querer sair daquela crise, da desesperança e da vontade de pular do 10º andar.

Será isso tudo condição para escrever como Faulkners, Hemingways, sem falar de Virginia Woolf, Tolstoy, Graham Greene, Ana Cristina Cesar? Não, definitivamente não. Todos eles e gênios como Van Gogh e Mozart sofriam de TAB. Não é necessário sentir uma profunda angústia por estar vivo para escrever sobre as dores de viver. Não é absolutamente necessário viver escrava das minhas oscilações bruscas de humor ou da minha estranha produção de neurotransmissores, para ver beleza no que é incerto e querer, sempre, dias mais densos.

Prefiro escrever posts medíocres e não publicar um conto genial ou um romance digno de nota. Prefiro não perder minha identidade recém recuperada, prefiro tomar mais aulas de otimismo. Prefiro trabalhar no que eu gosto com a regularidade que o mercado exige. Prefiro sim, ser parte do establishment. Prefiro, mil vezes, amar as pessoas sem chocá-las com idas ao pronto socorro, com palavras mordazes e injustas típicas da fase maníaca. Prefiro não morrer como Faulkner (morreu bêbado) ou Hemingway (cometeu suicídio). Prefiro escrever tudo isso aqui, saudável, em casa, na companhia de minhas duas golden retrievers. Prefiro ter capacidade de cuidar de minhas duas golden retrievers e de todas as pessoas que realmente são importantes para mim.

Para quem enxerga “nobreza na embriaguez” e “perda de autonomia” com a medicação, eu continuo minha via crucis, aquela da coragem, para dizer “você não sabe nada, meu caro”. E nem por isso eu sinto rancor de você e de tantas outras pessoas que, ao ouvirem de minha boca "sou bipolar e não vivo sem medicação”, franzem a testa. Escrever bem é uma arte. Controlar o que é aparentemente incontrolável é uma luta constante que, ao final, vale muito a pena. Posso dizer que entre mortos e feridos, cá estou.

Fim do texto. E não se fala mais nisso.

2 comentários:

Bebete Indarte disse...

Pra mim a bipolaridade virou assunto sempre em voga.
Sei que as pessoas não gostam, evitam, fofocam, ignoram...até acontecer com elas, com alguém na família.
Eu bem que gostaria de ser que nem antes do diagnóstico, mas não sou.
Quase morri e quase matei e fujo como o diabo da cruz da "depressão forte", pois a depressão leve está sempre presente.
Mas como minha mãe contava sobre o causo da "índia canibal":
- "Ai que saudades de comer um bracinho de criança".
Essa sensação de nostalgia vou sempre ter.

Ai, que saudade da minha hopomania.

Bebete Indarte disse...

hipomania, teclei errado (oops).